Quando a lei avança, mas a cultura resiste: por que o feminicídio não diminui no Brasil?
Conversamos com Rossana Marinho sobre por que, mesmo com leis mais rígidas, o feminicídio segue aumentando no Brasil — e como a cultura patriarcal, as falhas institucionais e a subnotificação ajudam a explicar a persistência dessa violência
Por Amanda Stabile
10|12|2025
Alterado em 10|12|2025
A violência contra mulheres no Brasil permanece em níveis alarmantes — e os dados mais recentes mostram que o cenário continua se agravando. Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, as tentativas de feminicídio aumentaram 26% em 2024. Entre janeiro e setembro de 2025, o país registrou mais de 2,7 mil tentativas e mais de mil feminicídios — números que reforçam a gravidade de um problema estrutural e persistente.
O feminicídio é o assassinato de uma mulher motivado por razões de gênero — ou seja, quando ela é morta por ser mulher. Em 2015, a Lei nº 13.104 incluiu o feminicídio como qualificadora do homicídio, o que significava que o crime continuava sendo juridicamente um homicídio, mas com pena maior (de 12 a 30 anos) e classificação como crime hediondo.
Em outubro de 2024, a Lei nº 14.994 trouxe uma mudança importante: o feminicídio passou a ser um crime autônomo, com artigo próprio no Código Penal e pena mais alta (de 20 a 40 anos). Na prática, isso reduz as brechas para que o crime seja desclassificado durante a investigação ou o julgamento, já que deixa de ser apenas um “acréscimo” ao homicídio comum e passa a ter um enquadramento específico.
“A Lei do Feminicídio tem sido um instrumento importante para nomear e enfrentar essas mortes. A partir dela, há uma pressão maior para que os crimes sejam investigados adequadamente, que as razões de gênero sejam visibilizadas em qualquer lugar onde ocorram e uma melhora na qualidade da produção de dados”, explica Rossana Maria Marinho Albuquerque, mestre e doutora em Sociologia e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UPFI).
A pesquisadora também alerta que, apesar dos avanços, ainda persistem grandes lacunas. “O enquadramento mais reconhecido como feminicídio é quando ele ocorre no ambiente doméstico ou por relações intrafamiliares. Ainda existe dificuldade de se observar as razões de gênero nas ruas, nos conflitos urbanos, nos ambientes de trabalho, o que coloca em risco a vida das mulheres em qualquer lugar que elas estejam”.
A socióloga destaca que, mesmo com o feminicídio agora definido como crime autônomo, o sistema de justiça continua apresentando resistência. Em alguns processos, defesas tentam afastar a motivação de gênero para descaracterizar o crime. Segundo ela, essas estratégias funcionam como formas de apagar o debate sobre violência de gênero e dificultar o avanço das políticas públicas.
Para além disso, a redução das violências e das mortes só é possível por meio de outras iniciativas, da promoção de políticas públicas, do adequado financiamento à proteção das vidas das mulheres, para que o enfrentamento das violências de gênero se fortaleça e evite qualquer uma das modalidades.
Os números mostram, mas também escondem
Em relação ao aumento de casos de feminicídio, Rossana aponta que a elevação dos registros não significa simplesmente mais violência, mas também uma maior capacidade de identificá-la. Mas destaca que isso não significa um cenário menos grave.
“Temos, simultaneamente, a presença de uma cultura patriarcal profundamente enraizada na sociedade brasileira, estimulada por grupos de homens machistas, pelas tentativas de impedimento das discussões de gênero e sexualidade nos espaços de educação, além de instituições que reforçam em seus discursos e práticas a lógica da violência”, aponta.
O que é importante observar, desde já, é que ao mesmo tempo em que há uma forte manifestação das práticas machistas, há também inúmeros processos de resistências macro e micro. Então, onde há expressão do machismo, tem também as resistências.
O mito do “crime passional”
Rossana também chama atenção para a forma como esses crimes continuam sendo narrados. Embora a Lei do Feminicídio esteja completando dez anos, expressões como “crime passional” seguem surgindo em manchetes e boletins de ocorrência. O problema, explica a socióloga, é que o termo desloca o foco da violência para a “paixão”, como se o que estivesse em jogo fosse sentimento — e não poder, controle e desigualdade de gênero.
A ideia de ‘crime passional’ é vinculada a uma lógica patriarcal. Ela converte a ideia de poder sobre vida e morte da mulher em uma noção de emoção, afetividade, de que ‘matou por amor’, em uma tentativa de justificar e amenizar a letalidade.
O caso de Eloá Pimentel — adolescente sequestrada e assassinada pelo ex-namorado em 2008, em uma violência transmitida ao vivo por mais de 100 horas — ajuda a entender por que o termo “crime passional” é tão problemático. Como discute o artigo “Violência de gênero: desqualificação do crime passional pela ótica do feminicídio no caso Eloá”, mesmo diante de uma situação extrema de controle, cárcere e violência, parte da imprensa tratou o episódio como um “drama amoroso”.
A narrativa suavizava a violência e transformava um ato de punição e dominação contra uma adolescente em uma história marcada por emoção e conflito. Essa lógica aparece até hoje: no documentário “Caso Eloá: Refém ao Vivo”, lançado em novembro de 2025, alguns entrevistados ainda se referem ao assassinato como “passional”.
Em 2008, o Brasil ainda não reconhecia legalmente o feminicídio, o que contribuiu para que a violência fosse tratada como um conflito entre jovens, e não como crime de gênero. Como apontam as autoras do artigo que analisa o caso, a ausência desse enquadramento abriu espaço para explicações que culpabilizavam a vítima e suavizavam o agressor.
Crimes de honra: proibidos na lei, vivos na cultura
Antes de o feminicídio existir como categoria, muitos assassinatos de mulheres eram defendidos nos tribunais como “crimes de honra” — quando o homem matava a esposa ou companheira alegando defesa de sua reputação. Essa tese foi oficialmente proibida em 2021, quando o Supremo Tribunal Federal a considerou inconstitucional. Desde então, não pode mais ser usada como argumento jurídico.
Um dos casos mais emblemáticos dessa lógica foi o assassinato de Ângela Diniz, em 1976. O caso mobilizou o país e, em 2020, foi revisitado no podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, que ajuda a entender como essa narrativa se consolidou na cultura brasileira. A socialite mineira foi morta com quatro tiros no rosto pelo então namorado, Doca Street, na Praia dos Ossos, em Armação dos Búzios (RJ). No julgamento, a defesa alegou “legítima defesa da honra”, sustentando que o comportamento de Ângela teria provocado o crime.
A ampla repercussão do caso também expõe como raça e classe influenciam quais mortes ganham atenção. Ângela era uma mulher branca e de elite, fatores que contribuíram para que sua história se tornasse símbolo nacional, enquanto feminicídios de mulheres negras e periféricas seguem, em muitos casos, invisibilizados.
Rossana destaca que, ainda hoje em dia, mesmo sem aparecer com esse nome, a lógica dos “crimes de honra” voltam à cena quando a sociedade tenta encontrar algum comportamento da vítima que “explique” a violência: sair de casa sozinha, terminar um relacionamento, conversar com alguém, vestir determinada roupa.
“Ainda encontramos narrativas que legitimam a lógica patriarcal, como em um caso de feminicídio ocorrido no Piauí, praticado pelo ex da vítima, no qual a mulher e seu atual companheiro foram assassinados na via pública, em plena luz do dia, no centro da cidade, e grande parte da cobertura midiática tentava especular sobre uma ‘traição’ que teria motivado o crime”, conta.
“Houve muito desgaste da imagem da vítima, o que significa não apenas uma revitimização, mas uma legitimação narrativa desta violência, que continua tentando buscar na mulher as razões da morte violenta e não na cultura machista que persiste na sociedade”.
A lei que não chega para todas
Outro ponto enfatizado por Rossana é a profunda desigualdade na aplicação da lei. A morte de mulheres negras, periféricas, indígenas, lésbicas e trans segue sendo subnotificada, mal enquadrada ou invisibilizada pelos sistemas de registro.
“É inadmissível que ainda haja tantos formulários sem informações nas bases de dados da segurança e/ou serviços de atendimentos às mulheres. A ausência revela a falta de prioridade da pauta e de uma articulação consistente entre as instituições, que seja capaz de produzir adequadamente os dados”, afirma.
Esse apagamento institucional, segundo ela, produz políticas públicas frágeis e impede que a dimensão real da violência seja conhecida. A pesquisadora lembra que, mesmo com avanços legislativos, o alvo majoritário da violência permanece o mesmo: mulheres racializadas, sobretudo negras e periféricas.
A combinação entre raça e território define tanto quem morre quanto quem permanece fora das estatísticas. Ela alerta:
A raça e o território são relevantes para observarmos o perfil das mulheres que morrem e onde morrem. No entanto, a existência de lacunas nas estatísticas mostra que há sujeitas e territórios invisibilizados em termos de perspectiva de investigação e narrativas produzidas sobre.
O transfeminicídio de Rhianna Alves, na Bahia, ocorrido no último fim de semana, é um exemplo dessa realidade. O agressor levou o corpo até a delegacia, confessou o assassinato e, ainda assim, foi liberado. Para Rossana, o caso reúne características típicas da violência letal contra mulheres trans e travestis, marcada pela legitimação cultural da violência e pela omissão institucional.
Ela questiona: “Como esse crime será enquadrado? Como entrará para as estatísticas? Como será lembrado pela sociedade? Se não entendemos o valor desta vida perdida, significa que estamos muito longe de reduzir o quadro de violências de gênero”.